sábado, 28 de dezembro de 2013

É só uma piada


Suponhamos que você seja um negro escravizado na época da escravidão, é tratado como animal, recebe chibatadas, é xingado pelos brancos, humilhado, tudo isso porque as pessoas acreditam que os negros são inferiores. Então alguém faz uma piada que reforça essa ideia, mas acham um absurdo que você se sinta ofendido, querem que você ria dela, ache legal, engraçada, afinal, é só uma piada! Tudo bem você se revoltar com o modo como você é tratado no mundo real fora-da-piada, mas quando aquilo vem na forma de brincadeira, uma brincadeira que reforça a violência, o preconceito, tudo bem, tudo certo. Afinal, a brincadeira não carrega fundo algum de verdade, ela é um discurso que só serve pra fazer rir e depois evapora, não é política, não causa efeitos no consciente nem no inconsciente, certo? Errado.

Agora suponhamos (ou não, dependendo do leitor) que você é negro, sofre racismo todos os dias, de várias formas, de vários lados, ouve que seu cabelo é ruim, que sua cor é feia, que você é burro, fora viver com o histórico de escravidão dos seus antepassados, o modo como estes foram tratados e tão imensamente machucados, maltratados, violentados. Mas então alguém conta uma piada sobre negros, reforçando a violência que você sofre todos os dias, mas dessa vez é BRINCADEIRA, então você deve rir! É bobagem, ele não quis realmente dizer que você é isso ou aquilo, é só uma piada, ria! Deixa de ver preconceito em tudo! Ria ao ouvir "só podia ser preto!", ria! Porque foi só uma piada, afinal.

Se a piada é sobre mim e me incomoda, quem é você pra validar se ela é pesada mesmo ou não, se ela fere mesmo ou não?


Mas, ainda dentro do tema, posso discursar com muita experiência (toda a vida) sobre o movimento é-só-uma-piada dentro de um outro exemplo muito persistente e importante: o das mulheres. Não consigo rir de um discurso que me satiriza de forma machista, machismo esse que me violenta todos os dias, que me diz coisas nojentas e grosseiras de conteúdo sexual toda vez que eu saio pela rua, que me diz que eu não posso porque sou mulher, que eu não consigo, que eu faço errado, que eu devo me calar, que preciso ser desse jeito e daquele outro, fazer isso e aquilo. Essa piada NÃO ME FAZ RIR, não me desperta graça, sabe por quê? Porque o discurso por trás dela me espanca todos os dias e isso está bem mais perto de me fazer chorar do que rir.

É muito fácil fazer piada preconceituosa, elas estão aí, é muito fácil apoiar o sistema racista, machista, heteronormativo, é muito fácil ir com a maré, difícil mesmo é fazer piada inteligente. E não, não é só uma piada, é uma piada, e é muito, é gigante! Ela causa efeitos na multidão que ri, e o riso não é o único deles. Cada piada preconceituosa é um pilar na base que sustenta esse preconceito. Assim, por fim, desejo que algum dia as piadas possam servir como pilar para ideias melhores e que, até lá (e para chegar lá), a gente pare de rir do que não tem a menor graça.

2 comentários :

  1. Concordo que nem toda piada deve ser dita e nem em todo lugar, mas em alguns casos essas piadas de mal gosto podem ser usadas para mostrar que o problema existe, como essa que o próprio danilo gentili postou no dia das crianças: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=533196830090209&set=pb.137547819655114.-2207520000.1388252762.&type=3&src=https%3A%2F%2Ffbcdn-sphotos-e-a.akamaihd.net%2Fhphotos-ak-ash3%2F1382970_533196830090209_120123538_n.jpg&size=640%2C640

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  2. Concordo com tudo! Não é "qualquer coisa que é válida para fazer rir". No "é só uma piada" existe uma reprodução de pré-conceitos e opressões que são historicamente e socialmente colocadas. O argumento "é só uma piada" é uma justificativa para continuar reproduzindo e, pior, banalizando a opressão.

    Há uma recente geração de humoristas me envergonha... Não assisto, não rio nem aconselho. Deixo como sugestão o excelente documentário (que tenta assumir um tom neutro) do Pedro Arantes: "O riso dos outros", que trata de uma parte desta polêmica.

    http://www.youtube.com/watch?v=uVyKY_qgd54

    Um abraço

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