segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Preta


As histórias que me contavam os pés descalços e a barra da saia da minha avó na cozinha era que nariz de preto se afina com pregador, que no meu não tinha dado jeito. O cheiro de alho e pimenta do reino na panela se misturam com as lembranças da menina que mesmo antes de ter dez dentes na boca sabia que não era dali, nem de cá, nem de Guimarães Rosa para ser a menina de lá, embora fosse.

Ouvia que era branca que nem parede e também que assim não podia ser, que infortúnio, cabelo tão duro em cabeça tão branca. Duro mesmo era pentear esses cabelos de manhã, "Misericórdia menina, isso é castigo, não é cabelo". Por isso me chamaram Sarará, não sabia ainda o que era exatamente, mas pela cara que as pessoas faziam não devia ser bom. Todas as manhãs por dez anos eu chorava para pentear os cabelos, era um ritual de tortura, e nem as tranças e os dentes perdidos dos pentes garantiam meu álibi, já estava condenada.

Eu também aprendi a ser racista. Porque eu também não me achava minimamente preta embora fosse completamente condenada por sê-lo.

Um dia um coleguinha me emprestou o apontador e quando devolvi agradecendo ele disse: "de nada sarará" sem fazer muita questão, fazendo uma chibatada eu não soube o que fazer e aceitei, porque afinal ele era branco e tinha o cabelo liso. Cabelo é uma palavra engraçada, todas as vezes que molhava o meu pedia para Papai do céu deixar ele assim para sempre, não molhado, mas lisos como ficavam naquele breve espaço de tempo.

No Rio Grande do Sul, primeiro mundo, me chamaram de Crioula, Moreninha, Mestiça. Um tio belíssimo enquanto escovava dolorosamente os meus cabelos justificava as queimaduras como único recurso para alisar a minha "Herança da Senzala", todos se divertiam e o achavam engraçadíssimo quando ele falava isso, eu também achava e concordava e abaixava a cabeça, porque eu era SARARÁCRIOULAMORENINHAMESTIÇA mesmo, o que se pode fazer?

Um dia pela primeira vez na minha vida uma pessoa falou que gostava mais do meu cabelo natural, ainda de cabeça baixa argumentei que ele liso era mais fácil de cuidar. Não era, era medo. Quando meus cabelos voltaram ouvi com pesar que "estava parecendo uma negramaluca" e lutando contra as lágrimas e a chacota diária persisti no meu cabelo, porque eu sou mesmo uma negra muito maluca, maluquíssima, afinal não existe racismo aqui na terra Brasilis e eu só posso estar MALUCA de achar que eu """""""branca""""""" desse jeito sofri com racismo porque eu sou preta, essa frase nem faz sentido, não é? Faz. Todo sentido. Porque eu sou preta e não faz só sentido, faz história, trajetória e crença. 

Um comentário :

  1. Numa época de permanentes, pranchinhas e escovinhas, cabelos meticulosamente desgrenhados, dreadlocks de boutique o """ao natural""" é tipo tamanduá-bandeira - está em extinção. Vai passar a ser coisa exótica.

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